O peso dos séculos sobre a história do Direito.
O peso dos séculos sobre a
história do Direito.
Já advertia Hegel: “A coruja
de Minerva só voa ao entardecer”[1]. O que serve para alertar
os jovens historiadores do direito, para que se distanciem dos incêndios, para
que as fumaças do entusiasmo não os ceguem e a proximidade do calor não lhes
reduza a sensibilidade das mãos que folheiam as fontes.
De fato, o peso do século XIX
é mito presente e a construção de história científica em claro contraste com a
historiografia ultramilitante do Iluminismo, culpada em julgar épocas e nações
distintas a partir de seus padrões uniformes que eram reinantes.
Precisamos proclamar sem
cessar o valor intrínseco de cada época e de cada nação na sua singularidade.
Não se pode desprezar o passado e mensurar-se por padrões próprio de seu tempo,
e, sim, conforme a fórmula de Ranke que "toda época" seria igualmente
próxima de Deus.
O pior adversário do projeto
de cientificização situa-se na historiografia ultramilitante peculiar do século
XIX com seus autores liberais e reacionários, disputando o passado como campo
de guerra. Por ser ultrapartidarizada e servil à imediata política e que punha
a perder a História e ainda emburrecia a política.
Observou-se que a Ciência da
História se construiu diante dessa tensão e, nem os expoentes como Savigny e
Ranke escaparam. Não faltam indícios de ambos os doutrinadores estavam
conscientes do impacto político que significava a cientificização da história.
A tentativa de distanciamento
da historiografia em relação à militância direta e às polêmicas políticas
produzidas no século XIX representava um salto de qualidade na produção
acadêmica, com preço elevado onde havia o predomínio da ideologia sobre a neutralidade
científica.
Aliás, como ciência e
disciplina universitária, a História do Direito se construiu no século XI, sob
a mesma tensão. Onde se identificou evidentes influências da política que a
impulsionavam, por exemplo, os estudos sobre a Idade Média, quando os nacionalistas
buscavam as origens da nação e reacionários ou liberais buscavam, antes do
Absolutismo, o pedigree história para suas pretensões partidárias. Mas,
também se fazia presente no discurso oficial para o apelo à isenção científica,
o que fazia com que se escapasse das fogueiras de entusiasmo dos conflitos
recentes.
Houve vozes importantes que se
ergueram para desmascarar a fuga ao passado como garantia de maior objetividade
científica. Em Droysen que colocou a questão da inevitabilidade da história
refletir, em seus temas, a visão de mundo e os anseios do historiador.
E, foi a extraordinária
empreitada de Max Weber de rediscutir as condições do fazer ciência no âmbito
de uma História em que o próprio início da investigação já é wertbedingt,
condicionado por valores (e preferências) do estudioso.
Droysen reconhecia a
necessidade de um autocontrole do pesquisador para que as afirmações deste
pudessem reclamar validade intersubjetiva e se submeter ao juízo crítica
alheio.
Salientava, porém, quee os
fatos seriam mudos, sem aquele que os selecionava e contava: a história
dependia, na verdade, das percepções do historiador sobre o que importaria
"agora e aqui".
O início do trabalho do
historiador não estaria, pois, no cuidadoso exame de Ranke das fontes, mas sim
na elaboração de uma questão capaz de dirigir, a partir do presente, o olhar do
historiador para os testemunhos do passado.
As próprias formas de
exposição na historiografia seriam determinadas, em última análise, não de
acordo com os passados investigados, mas sim a partir dos motivos da pesquisa
ou do pesquisar. (apud Rüsen, J. 1993).
De fato, assiste razão à Marc
Bloch no século XX que: "os textos ou os documentos arqueológicos (...)
não falam senão quando sabemos interrogá-los (In: BLOCH, M. 2001).
Um tema recorrente como a luta
de classes, mostra nos escritos de Marx e Engels sobre Müntzer, a origem da
família e sobre o feudalismo. Existe toa uma ideologia do fugir à ideologia na
estratégia do distanciamento temporal.
Quem escreveu sobre as
vetustas leis agrárias romanas não entende as reformas pombalinas, os devotos
do livre mercado, do feudalismo ou ainda da Companhia de Jesus. A própria
Revolução Francesa ainda de certo modo permanece como tema aberto e prossegue a
tendência, para certa identificação com os lados em embate na luta. E, tal
fenômeno não é estranho.
O historiador do direito assim
como qualquer outro historiador, vive caminhando entre a miragem da
objetividade e a tentação do subjetivismo. E, até mesmo certa proximidade
temporal poderá transformar-se num equilibrismo circense.
Tucídides escrevendo sobre a
Guerra do Peloponeso, constataremos que a própria como gênero se iniciou, como
história contemporânea. Para poder legitimar-se toda historiografia precisa
usar as mutáveis regras da arte e da reflexão crítica sobre seus pressupostos e
metas, o lidar com contemporâneo talvez só exigiria, completamente, uma
autocontenção reforçada, para evitar previsões ou para o tratamento, como algo
já encerrado, de estruturas, tendências e fenômenos.
A necessidade de evitar
metáforas e hipérboles na história do direito, para que a linguagem, desta não
se furte à possibilidade de refutação frontal no debate científico.
Cumpre apontar que a história
contemporânea vivencia um paradoxo: sofre não de falta, mas sim de excesso de
fontes. E, que estão tão disponíveis, provavelmente, mais imagens de sessões
maçantes nos TRTs, do que capitulares de Carlos, O Calvo. O que não altera as
etapas e tarefas essenciais de toda análise crítica de fontes como a
localização, organização, verificação de autenticidade, leitura crítica e
interpretação.
Apesar de mutáveis as regras,
todas têm a pretensão de validade em relação a todos os seus membros, mesmo
para aqueles que sofrem, pesquisando o contemporâneo, com leis restritivas do
acesso a documentos ou, pelo contrário, com a vastidão incontrolável das
informações disponíveis.
As fontes em material da
história do direito contemporâneo são pouco duráveis podem ainda ser achadas,
testemunhas vivas entrevistadas, inclusive se ouvindo segmentos sociais
subrepresentados nas fontes herdadas de outras eras.
E, nada iguala o delicioso
perigo de ver toda uma cuidadosa tese destruída pelo simples falar de um idoso,
que do público que proclama: "Não foi nada disso. Eu estava lá e foi tudo
diferente...".
Mesmo um historiador do
direito do rigor e seriedade de Joachim Rückert pode ser exposto. Como adverte
Jan Schröder, uma pesquisa alemã em 1975, focada nos últimos dez anos,
concluiria pela existência de uma liberalização do direito penal, mas logo
ocorreria uma série de novas criminalizações, envolvendo desde a informática
até a proteção do meio ambiente.
Os recortes temporais próximos
igualmente podem dificultar a separação da História do Direito e da Sociologia
Jurídica o que pode propiciar uma adesão muito rápida às derradeiras modas
desse ramo, antes de seu período de decantação se completar e o que há de mais
melancólico do que ver tanta energia gasta em renomear segundo a última moda
tudo aquilo que já foi tantas décadas analisado e teorizado.
O que deveria ser um
enriquecimento mútuo de duas áreas pode virar uma passageira uniformização ou
mesmo, o que é ainda mais grave, o uso da história do direito para exaltar a
Sociologia Jurídica como a marca por definição de todo progresso mental, no campo
do ensino jurídico.
Isso poderia inclusive
desandar em uma narrativa artificial e empobrecedora, quee tende a reduzir a
história deste último a uma luta entre a modernidade (correspondente à
Sociologia Jurídica) e o apego reacionário ao passado, supostamente encarnado
no ensino do Direito Romano.
O fato da história
contemporânea do direito abordar o direito recente também pode, é claro, gerar
tensões com a dogmática. Tais tensões são mais administráveis se não
misturarmos os talheres na mesa.
A história do direito é, como
ressaltava Wieacker, ramo da história e seus métodos são os métodos desta. A
dogmática não pode, portanto, fazer da história do direito sua escrava,
obrigando-a a declarar institutos eternos ou a coroar o direito vigente como
suposto apogeu de um grande progresso infinito.
A história do direito não pode
lançar encíclicas infalíveis, fixando para os institutos e dispositivos legais
uma única linha de interpretação ortodoxa. É bem verdade que a história do
direito contemporâneo pode dar subsídios à chamada interpretação histórica ou
convidar o aplicador do direito a perceber o caráter contingente e mutável
deste último, auxiliando-o um pouco na adaptação aos novos tempos e
circunstâncias.
O historiador do direito
contemporâneo não está impedido de aportar contribuições como historiador às
discussões sobre a política legislativa, por exemplo, identificando as
estruturas anacrônicas residuais ou destruindo fatalismos, pelos simples
desmontar da existência. Ou das já esquecidas alternativas perdedoras ou
abandonadas.
Lembremos que a dogmática e a
história do direito desempenham funções diferentes e, preservar a história do
direito como instância autônoma com função crítica.
Relembremos as advertências de
E. P. Thompson, mas também as de Q. Skinner em Liberty before Liberalism
e, embora versão brasileira desta obra apresente algumas características
irritantes (por vezes, empregando desnecessariamente em inglês o termo Digest
e traduzindo Commonwealth como comunidade e Rump Parliamente por
Parlamento não representativo) ainda é o texto mais acessível a nos chamar
atenção para o fenômeno do apagar das alternativas derrotadas na história do
pensamento político.
Essa distinção funcional me
parece melhor do que as vãs tentativas de barrar à história do direito o estudo
do direito vigente, como se a história do direito contemporâneo não pudesse,
estranhamente, tratar do direito contemporâneo.
Se o direito vigente fosse
monopólio da dogmática, a história do direito contemporâneo restaria sem objeto
quanto mais em países com códigos e constituições com poucas décadas ou séculos
de idade.
O historiador de Direito
certamente não é neutro nem escolhe o que pesquisar, principalmente, em anos difíceis como
ditadura, e outros tantos onde a liberdade de expressão convive ao lado da
censura ferrenha e cruel. Deixará de se alegrar quando as informações forem
inúteis na defesa de suas crenças e convicções políticas e nos embates
judiciais.
Enfim, há uma ingênua crença
na objetividade da história do direito, bem como na imparcialidade do bom
julgador nada mais significa do que uma fuga ao tendencionismo consciente.
Conforme preconizava Mommsen, "onde está o perigo, eis onde está a honra."
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[1]
Hegel falava de toda a filosofia, mas as suas palavras valem para todo o
pensamento reflexivo. O pensamento reflexivo parte de algo que é história –
portanto, algo que já foi no tempo. No crepúsculo que ela se torna importante,
pois é antes de mais nada uma transição, pois no crepúsculo ainda não temos a
noite (Mas nos lembremos que a coruja enxerga melhor à noite). Na compreensão,
o reconhecimento, nas palavras de Hegel, não é rejuvenescimento, pois vivemos
sempre para a frente. E compreender se compreende olhando aquilo que já não é
mais, mas já pensando aonde ir e onde queremos chegar. Sempre se tem uma
dimensão de projeção temporal, pois o homem, antes de mais nada é um SER
Temporal, ou seja, tem capacidade para se projetar no futuro, ao mesmo modo que
é histórico e social (coexistencial).
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